Cheiro do Tempo
(Memoriais de Sofia/Zocha)
Como era imenso o mapa da infância daquela Vila. Não cabia nõs cadernos de cartografia, nem nas pautas dos cadernos de caligrafia, Zocha gostava de cheirar os cadernos e os livros, tinham um estranho perfume de certezas. .Quando o pai de botas longas chegava e trazia livros de capa dura, o cheiro novo impregnava os sonhos da menina sardenta. Havia uma sala numa lição do livro com cadeiras de espaldar alto e uma mesa com toalha alva onde todos sentavam em derredor. Então, acontecia do tempo daquele jogo de jantar cor bege com cadeiras de espaldar alto e aquela casa vazia da rua Jaime Balão . A mãe com espasmos na cama, toda roxa, o pai distante, aqueles natais com velinhas acesas ,aquele balcão alto como uma muralha e aquele estranho vaso de ceramica sobre a mesa elástica onde morava um chinês e Zocha conversava com ele. Como contar para alguém que a infância não tem fronteiras e se alarga e pula que nem os yo yos, e não tem jeito, quando a gente ve tá lá na venda do Rufino, com aquele cheiro de queijaria,de fumo e mortadela, de linguiças com mosquitos no varal dos olhos, cheiro de molhados e secos, das sardelas que a mãe comprava da latona de sal e fazia com cebola no palito e a linha esticou e encolheu e o mapa não tem fim e a favela da Vila Lindóia crescia cada vez mais e a pipa esticava o céu, o tempo desaguava nos bueiros, Paulinho orelhudo e zolhudo iria morrer como de fato morreu afogado na praia...Os alto falantes da sociedade Guaira anunciam a festa de domigo, o padre Santo convoca as crianças, Zocha leva um tombo do balanço, o vestido levanta, as pernas brancas ficam à mostra, enlamea-se, põe sangue pelo nariz, ficará em quarentena até renascer...enquanto o chinês do vaso a levava para passear naquele Jardim, o tempo cresceu e alguém a olha fixamente nos olhos, nos cabelos, nos seios, lhe sorve por inteiro e ela sente-lhe o cheiro, o cheiro do tempo...
Lilian Reinhardt
Enviado por Lilian Reinhardt em 20/05/2011
Alterado em 15/07/2011