Vincent Van Gogh.Self-Portrait as an Artist,1888
Oil on Canvas, 65,5 x 50,5 cm
(Vincent Van Gogh Stichting)
Vicent Van Gogh Museum, Amsterdam
F522
VINCENT VAN GOGH E UMA ESTÉTICA DA INQUIETUDE DO SENTIDO EXISTENCIAL
O espírito da modernidade na arte tem em Vincent Van Gogh, consoante Argan, o registro histórico de um depoimento pessoal do drama do artista e do homem, que sentindo-se excluído de uma sociedade que não utiliza o seu trabalho, o alija, faz dele um desajustado, soterrando seus ideais e compelindo-o à extremas consequencias existenciais. Essa sociedade, acentua o citado autor, coloca como finalidade única do trabalho, o lucro, e evidentemente não pode fazer outra coisa senão rejeitar quem denuncia as condições antihumanas que ela produz com seu servilismo.
Nesse contexto, dentro da historiografia da arte, vemos que o século XIX se caracterizou como um corolário de rupturas de valores, não sòmente estéticos, mas, filosóficos, políticos, sociais, literários que abrangeu amplas tendências nacionalistas libertatórias, bem como agasalhou a eclosão de valores socio-culturais de uma nova sociedade tecnológica que então emergia. Assim, a transformação das tecnologias e a organização da produção econômica, como ressalta o historiador Argan, terão consequencias de ordem social, filosóficas, artísticas que colocarão em crise a arte, com suas técnicas refinadas e individuais, provocando transformações em suas estruturas e finalidades, que à época se constituía em modelo de artesania produtiva.
Vicent Van Gogh carrega a inquietude existencial de Kierkegaard e Dostoievski, pois da mesma forma se interroga sobre o significado da existência, do estar no mundo.Costumava assim dizer:"A mão de um trabalhador é melhor do que o Apolo de Belvedere". Ainda na Holanda, suas primeiras pinturas já abordavam francamente e frontalmente a problemática social da época. A obra dessa fase descreve em sombrios tons, a miserabilidade da condição humana, pelo desespero dos camponeses com que o pintor os retrata. Nessa fase, seu trabalho é escuro, quase monocromático, de uma fealdade expressiva, com figuração já deformada. Van Gogh posta-se lado a lado com os deserdados, com as vítimas da exploração do homem pelo homem, com os trabalhadores explorados, com os camponeses dos quais o novo sistema economico-industrial retira além do pão, os sentimentos mais íntimos de eticidade e crença, de confiança nos ideais mais puros do homem.
Seus mestres serão aqueles pintores mais engajados a representar os camponeses, os operários, artesãos, gente do povo, como Millet, Courbet, Daumier. Em Paris já estivera trabalhando em 1875, como empregado da loja de gravuras Goupil, e, em 1886 retorna e encontra os impressionistas. Torna-se amigo do pintor Toulouse-Lautrec. Nesse período abandona os temas sociais e as tintas castanhas e negras e já passa a pintar como um cromatismo peculiar, próprio, violento. exacerbado. Fixa residência em Arles em 1888 e sua pintura passa a ter um empenho moral mais resoluto e agressivo. Não acompanha Seraut nem Signac nas novas pesquisas no sentido de aprofundar os estudos impressionistas quanto à percepção das sensações de forma mais analítica, mais científica. À essa pesquisa de cognição, Van Gogh vai opor-se com uma pesquisa, um fazer ético próprio, pulsante, com um romantismo extremado. Não se questionará quanto à realidade da vida como contemplação, mas, sim como enfrentá-la, vivenciando-a por dentro, sentindo-a, vestindo-a, tendo consciência de sua circunscrição, de seus limites, dos quais não se pode libertar senão apropriando-se dela, com paixão, com intensidade tamanha de vida porque afinal,esta não levará à morte?
Assim, para Van Gogh não interessa pesquisas sobre impressão, sensação, emoção, visão, ou intelecto, mas lhe é essencial a pura e simples percepção da realidade como existencia do "aqui e agora", porque só tomando consciência dela, é possível forçar-se os seus limites até o rompimento. Quer então praticar uma pintura verdadeira", até o absurdo, o paroxismo, que conduza ao delírio.
Dessa maneira entende que a arte não é um instrumento, mas um agente de transformação social e experiência que faz o homem do mundo, devendo inscrever-se como uma força ativa no processo social, contra a alienação e a mistificação.
Argan salienta que com Van Gogh a técnica da pintura muda. Emerge realmente um fazer cuja gênese se encontra nas raízes mais profundas do Ser, caracterizando-se sua obra, como de um fazer ético a contrapor-se contra o fazer mecânico da máquina, na sociedade industrial moderna. O mundo não pode ser representado por ele tão sòmente de forma a captar a sensoriedade das coisas, mas há que escavar-se a realidade, porque cada signo na pintura de Van Gogh corresponderá há um gesto para enfrenta-la, na luta do homem para se apropriar do conteúdo de sua essencia, da vida. Cada signo portanto, deixa marcas, rastros, cortes, assim os auto-retratos do pintor, com seus sulcos, suas reentrâncias, passagens, desvãos, desníveis, sinais de angústia e consciência. Antecipando a filosofia existencialista, Van Gogh questiona a realidade. Esta como acentua Argan "é outra em relação a mim, mas sem o outro eu não teria consciência de mim, quanto mais o outro é o outro, diferente, incomunicante, mas, eu sou eu, descobrindo a minha identidade, o sentido-não-sentido de estar no mundo, " (1) e este se manifesta de forma aterrorizante, com sua descontinuidade, sua fragmentaridade.
Em relação à materialidade de sua obra, esta se caracterizará com uma existência autônoma, exasperada. As cores interessam a Van Gogh por suas relações espaciais-temporais como campos de força de atração, tensão, repulsão. Assim, em virtude desses relacionamentos, as imagens tendem a se deformar, a se distorcer, a se lacerar. Trabalha com ardor num ritmo acelerado de pinceladas, signos que se materializam sob o plano pictórico, numa vitalidade febril, convulsiva.
É trágico para Van Gogh não poder contemplar a realidade, mas ter que agir, ter que enfrenta-la com paixão, com fúria, impedir que a sua existencia destrua a sua, a nossa. ...O quadro não mais representa como diz Argan, simplesmente É. A arte torna-se então, obrigatoriamente, um ofício de viver, completa o historiador, citando Pavese. A busca do pintor é de uma ética humanista levada ao nível mais profundo da consciência, onde questiona valores e ações.
Dessa forma, se com a pintura de Cézanne encontramos as raízes do Cubismo, com a proposta de uma nova estrutura de percepção, em Vincent Van Gogh encontramos as raízes do Expressionismo, com a intensificação expressiva da individualidade, pautada pela angústia existencialista , sendo que o seu uso psicológico da cor é segundo Michelli, uma das contribuições do subjetivismo moderno à arte. Sua obra se caracteriza como proposta de uma arte-ação, ativa, pois profundamente ética questiona o humanismo e a realidade existencial, polemizando valores e culturas na modernidade, onde se insere a própria arte com sua essência e existência.
Nota
(1) cf. Giulio Carlo Argan, in Arte Moderna, pp125
BIBLIOGRAFIA
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras,1996.
CHIPP.H.B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes,1996
MICHELLI, Mario de . As Vanguardas Artísticas.São Paulo: Martins Fontes,1991.
STANGOS, NIKOS. Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1997
BOHRER, Harl Heinz (org.).Ética e Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,2001
BEHR, SHULAMITH. Expressionismo. São Paulo: Cosac& Naify, 2000
Lilian Reinhardt
Enviado por Lilian Reinhardt em 09/10/2006
Alterado em 05/11/2009